Mises e Keynes pelo fim da CLT

Mises e Keynes pelo fim da CLT


Diz-se no interior de São Paulo que muito a leste já é oeste. É aí que veremos Keynes virar Mises.

John Maynard Keynes defendia o uso do orçamento público para combater crises de liquidez. Ludwig von Mises acreditava que era o Estado que causava as crises quando injetava liquidez excessiva na economia. Keynes queria um Estado presente; Mises um Estado ausente. Mas, não se engane, Keynes era um liberal; só advogava a intervenção do Estado na economia porque identificou nas crises de liquidez uma falha de mercado que só o Estado poderia solucionar. Foi ele quem disse (Keynes, 1926):

“O importante é o governo não fazer as coisas que os indivíduos já estão fazendo, ou fazê-las um pouco melhor ou um pouco pior, mas sim fazer aquilo que ninguém está fazendo.”

Mises (1927) não concordava. Para ele o Estado não deveria intervir na economia:

“[A] tarefa do Estado consiste apenas e exclusivamente em garantir a proteção da vida, da saúde, da liberdade e da propriedade contra ataques violentos. Tudo o que for além é vil.”

O “liberalismo” de Mises evidentemente não é o mesmo de Keynes; é justamente o laissez faire cujo fim Keynes havia anunciado um ano antes da publicação de Mises. Keynes estava errado; a doutrina do laissez faire continua conosco; é o que hoje chamamos de libertarianismo. Hayek (1960) traçou bem essa distinção, 33 anos mais tarde, quando escreveu:

“Nem Locke, nem Hume, nem Smith, nem Burke poderiam ter argumentado, como fez Bentham, que “toda lei é má porque toda lei é um atentado à liberdade.” Os seus argumentos nunca foram completamente laissez-faire, que, como as próprias palavras demonstram, é também parte de uma tradição racionalista francesa, e o seu sentido literal nunca foi defendido por nenhum dos economistas clássicos ingleses. Eles sabiam melhor que todos os seus críticos posteriores que não era por mágica, e sim pela evolução de “instituições bem construídas,” onde “as regras e os privilégios de interesses opostos e vantagens negociadas” seriam reconciliadas, que canalizou exitosamente esforços individuais para objetivos socialmente benéficos. Na verdade, o seu argumento nunca foi anti-Estado assim, ou anárquico, a consequência lógica da doutrina laissez-faire intelectualista; era um argumento que considerava tanto as funções do Estado quanto os limites da ação do Estado.”

Hayek ainda não usa o nome libertarianismo, mas Zwolinski (University of California, San Diego) e Tomasi (Brown University) nos reiteram a distinção em linguagem corrente:

“[E]nquanto minarquistas estão de um lado lutando contra [anarcocapitalistas], de outro estão ao mesmo tempo também em guerra. Seus rivais no outro lado são os liberais clássicos. Essa facção, liderada por gente como Friedrich Hayek, Richard Epstein, Gerald Gaus, and Loren Lomasky, busca um Estado que é muito, muito menor que qualquer Estado hoje existente no planeta. Porém eles também defendem que um Estado legítimo pode, e em alguns casos deve, ser mais que o guarda noturno defendido pelos minarquistas. Quão grande exatamente um Estado legítimo deve ser é uma questão que os liberais clássicos discordam entre si. Mas há um consenso de que Estados devem usar receitas fiscais com justiça para prover bens comuns (no sentido preciso em Economia). E liberais clássicos, diferentemente dos libertários minarquistas, tendem a estar abertos à possibilidade de que a justiça permita ou até exija alguma parcela de redistribuição para prover uma proteção social aos mais pobres.”

Até mesmo Friedman (1951) tentou enterrar o laissez faire:

“A crença coletivista na habilidade do Estado de orientar a ação para curar todos os males é, contudo, uma reação compreensível a um erro básico na filosofia individualista do século XIX. Essa filosofia atribuiu quase nenhum papel ao Estado além de manter a ordem e o cumprimento dos contratos. Era uma filosofia negativa. O Estado só poderia fazer o mal. A regra tinha que ser o laissez faire. Ao assumir essa posição, subestimou-se o risco de que uns poderiam mancomunar-se para tirar vantagem e cercear a liberdade dos outros; falhou em perceber que havia algumas coisas que o sistema de preços não poderia fazer e que, a não ser que essas outras coisas fossem supridas, o sistema de preços não poderia cumprir o papel ao qual ele é tão admiravelmente apto.”

Mas, como sabemos, Friedman também fracassou; os torcedores do laissez faire estão mais fortes do que nunca. Será possível satisfazê-los, sem ignorar o problema apontado por Friedman? Surpreendentemente, é Keynes quem tem a solução.

O problema

Evidentemente não havia o menor cabimento para Mises que o Estado regulasse o mercado de trabalho. Empregados e empregadores saberiam melhor que ninguém qual o arranjo de trabalho que melhor lhes conviria. Não haveria a menor necessidade de haver legislação trabalhista. Como colocou Friedman (1951), é “a competição entre os empregadores [que protege] os trabalhadores”. Porém faz, ainda neste momento, a ressalva: “O Estado fiscalizaria o sistema, estabelecendo condições favoráveis à competição e a evitar monopólios”. Resta então responder: há monopólios entre empregadores e empregados que justifiquem leis trabalhistas? A julgar pelos seus salários, para altos executivos de empresas, não há. Se houver, é na contratação de mão-de-obra que não é profissionalizada. Sera que há?

Sim. Bonanno e Lopez (2012) demonstram, por exemplo, que o Wal-Mart consegue usar o seu tamanho para contratar mão-de-obra não profissionalizada por até 9% menos do que o salário justo de mercado, i.e. o que se pagaria caso o poder de barganha fosse equilibrado. Por que isso acontece? Simples: é muito mais fácil para o Wal-Mart trocar de empregado do que para o empregado trocar de empregador. É uma questão de aritmética: há muitos mais candidatos do que vagas. Isso é especialmente verdadeiro em relação a trabalhos que não exigem especialização; qualquer um pode fazê-los. A demora para encontrar outro emprego, custa ao empregado uma parcela muito maior da sua receita – em grande parte das vezes, toda ela – e representa um risco pessoal que o empregador não tem.

Caberia então uma legislação trabalhista. Porém, de que adianta, por exemplo, uma lei que estipula um salário mínimo, se o sujeito não tem real alternativa senão aceitar o salário mais baixo mesmo que fora da lei? Pior que isso, aceitando trabalhar na ilegalidade, ele abre mão não só da remuneração mínima, mas também de todos os outros direitos. No fundo as leis trabalhistas fazem mal justamente a quem deveriam fazer bem. Mas deixar essas pessoas descobertas também não é solução.

A solução, na teoria

Keynes (1936) pode resolver este problema: pleno emprego. Entendamos bem: pleno emprego não significa desemprego zero. Significa zero de desemprego estrutural. Desemprego estrutural não inclui aqueles que estão desempregados porque estão momentaneamente trocando de trabalho; é o que Marx chamou no Capital (1867) de exército de trabalhadores de reserva. O Estado passa a contratar estes que não conseguem emprego. Keynes recomenda em 1936 basicamente o que Roosevelt já estava fazendo de 33 a 38 no seu New Deal: contrata-se a mão-de-obra excedente para construir infraestrutura pública.

Ao fazê-lo, não só o governo injeta liquidez na economia, como queria Keynes, mas também enxuga o mercado de trabalho, evitando as consequências sociais nefastas do desemprego: criminalidade, alcoolismo, drogas, violência doméstica, desestruturação familiar, delinquência juvenil, distúrbios mentais, e por fim perda da capacidade produtiva por ócio e desatualização. De quebra, a remuneração e condições de trabalho oferecidas pelo Estado estabelecem um mínimo para o setor privado, por concorrência ao invés de por decreto. Melhor um emprego mínimo do que um salário mínimo. Porém, se o cidadão tem garantia de emprego em condições minimamente aceitáveis de trabalho e remuneração no setor público, para quê ele precisa de salário mínimo, regulamentações de horário, seguro desemprego, etc? A garantia de emprego basicamente elimina toda a necessidade de legislação trabalhista. Mises curtiu essa. E esta é justamente a proposta dos economistas pós-keynesianos da Teoria Monetária Moderna: Bill Mitchell (University of Newcastle), Randall Wray (University of Missouri, EUA) e Warren Mosler (Università degli Studi di Bergamo).

A solução, na prática

Como fazemos? Como absorver todo esse pessoal? Precisa ser uma parte da máquina pública que está preparada para recrutar pessoas sem qualificação, treiná-las e (re)capacitá-las. Quem melhor que as FFAA? Para isso funcionar, o alistamento deixaria de ser obrigatório (agora foram os liberais, anarquistas e pacifistas que curtiram). Assim já é na grande maioria dos países avançados da OCDE. Trabalhar nas FFAA é um… trabalho. E é pago. Atribuir a função de recrutar quem não consegue trabalho às FFAA é também uma forma de aproximá-las da cidadania, conferir-lhe um papel maior na sociedade, pelo menos num país que não está em guerra, e portanto um orçamento maior também (militares deram like, senhor!).

Isso não significa que todos tornam-se soldados. As FFAA brasileiras fazem muito mais do que missões bélicas. Em 2012, o exército fez a terraplanagem da extensão do aeroporto de Guarulhos. Entregou o projeto 4 dias antes do prazo, e gastou R$150 milhões (1/3) a menos que o orçado. Além desta, em 2012, o exército tocava mais 34 obras de infraestrutura pelo país. As FFAA fazem também ações cívico-sociais em comunidades carentes, prestam atendimento médico em áreas remotas, e socorros em catástrofes naturais. Seria função também das FFAA profissionalizar os recrutas para que possam voltar ao mercado de trabalho o quanto antes, retomando uma carreira. E isso ele também já faz. Desde 2003, as FFAA desenvolvem em parceria com o Senac o programa Soldado Cidadão, que em 10 anos (re)capacitou 165 mil jovens em 134 municípios. O Brasil tem 5.570 municípios e com certeza muitas mais pessoas que poderia absorver. Em 2012, o programa foi incorporado ao Pronatec, oferecendo cursos nas mais diversas áreas, onde os mais procurados são Turismo, Comércio, Conservação e Zeladoria, Informática, Saúde e Gestão. Segundo dados do Ministério da Defesa, pelo menos 67% dos usuários do programa acabam fazendo carreira na mesma área em que foram qualificados pelo projeto.

Resumo da ópera

  • desemprego estrutural → zero
  • obsolescência de capital humano → zero
  • miséria→ zero
  • alcoolismo → zero
  • violência doméstica→ zero
  • criminalidade → zero
  • burocracia → zero
  • rigidez no contratos → zero
  • precarização do trabalho → zero
  • crises de liquidez → zero
  • instabilidade monetária → zero

Todos trabalhando. Mãos à obra.

[youtube https://youtu.be/ZYFy6vkvOAg]

Bibliografia

BONANNO, Alessandro e Lopez, Rigoberto (2012), “Wal-Mart’s monopsony power in metro and non-metro labor markets,” Regional Science and Urban Economics, Vol 42, Ed 4, julho 2012, Pags 569-579.

FRIEDMAN, Milton (1951), “Neo-Liberalism and Its Prospects,” Farmand, 17 fevereiro 1951, pp. 89-93.

HAYEK, Friedrich A. (1960), “The Constitution of Liberty, 1960.

KEYNES, John M. (1926), “The End of laissez faire,” 1926.

KEYNES, John M. (1936), “The General Theory of Employment, Interest, and Money,” New
York: Harcourt-Brace & World, Inc.

MARX, Karl (1867), “Das Kapital”, Vol I, Penguin ed., p. 798, 1867.

MISES, Ludwig von (1927), “Liberalism, Cap I §11, 1927.

MITCHELL, William e Joan Muysken (2010), “Full employment abandoned: shifting sands and policy failures,” International Journal of Public Policy,  Vol 5, No. 4/2010.

ZWOLINSKI, Matthew e John Tomasi, “A Brief History of Liberalism”, Cap I.

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