A religião do ‘Privatize Já’

A religião do ‘Privatize Já’


Quem não se lembra do Pastor Everaldo defendendo a privatização de tudo na sua campanha das eleições presidenciais de 2014?

“O pastor Everaldo aceitou tudo o que eu sugeri e tem lido muitos livros”, diz Bernardo Santoro, do Instituto Liberal. (Liberais, libertários e conservadores, uni-vos, Folha de São Paulo, 5.10.2014)

Como vimos em um texto anterior, está se formando no Brasil um movimento fusionista que une os interesses de ultra-capitalistas e ultra-religiosos. Os ultra-religiosos entram com os fiéis e os ultra-capitalistas com o fiado. Por ultra-capitalismo, refiro-me à definição de capitalismo de Rand (1966):

Quando eu me refiro a ‘capitalismo’, eu quero dizer completo, puro, ilimitado, capitalismo laissez-faire sem regulação – com uma separação entre Estado e economia, da mesma forma e pelas mesmas razões que a separação entre Estado e religião. […] Toda interferência governamental na economia consiste em dar benefício não-conquistado, extorquido à força, a alguns em detrimento de outros.

Isso, como já sabemos, nada tem a ver com liberalismo. É Hayek (1960) quem nos conta que “[n]em Locke, nem Hume, nem Smith, […] foram completamente laissez-faire”. Para não haver dúvida, Montesquieu coloca isso com todas as letras:

A liberdade do comércio não é a faculdade dada aos negociantes de fazerem o que quiserem; isso seria antes a sua servidão. O que atrapalha o comerciante nem por isso atrapalha o comércio. (Montesquieu, 1748, Vol XX)

Mesmo Friedman (1951) admitia que era necessário regular os mercados

A filosofia [individualista] atribuía quase nenhum papel ao Estado senão a manutenção da ordem e o cumprimento de contratos. Era uma filosofia negativa. O Estado só poderia fazer o mal. A regra tinha que ser o laissez faire. Ao assumir essa posição, subestimou-se o risco de que uns poderiam mancomunar-se para tirar vantagem e cercear a liberdade dos outros; falhou em perceber que havia algumas coisas que o sistema de preços não poderia fazer e que, a não ser que essas outras coisas fossem supridas, o sistema de preços não poderia cumprir o papel ao qual ele é tão admiravelmente apto.

Por isso fez a ressalva de que, no “neo-liberalismo”, “o Estado fiscalizaria o sistema, estabelecendo condições favoráveis à competição e a evitar monopólios”. A existência de monopólios sempre foi a preocupação dos liberais, já desde Adam Smith:

Os pedágios para a manutenção de uma auto-estrada não podem com segurança alguma ser privatizados. (Smith, 1776, Vol. I, Cap III, Parte I, p. 786)

Mas há quem defenda privatização de tudo, como se fosse um remédio milagreiro, e ainda se auto-intitula liberal.

Privatizar ou não, segundo os liberais

Liberalismo não é receituário; é um conjunto de princípios morais, calcados principalmente na universalização das liberdades individuais. O liberalismo não é anti-Estado; ele é simplesmente a favor da equidade. Como se deve fazer é questão de percurso e engenharia econômica. Pode ser pela via do mercado, ou do Estado; isso não importa. O que importa é que as liberdades individuais sejam as máximas possíveis, especialmente a daqueles que as menos têm.

Por isso liberais não são privatizadores dogmáticos. Se for possível criar um mercado concorrido, ótimo; é realmente um meio fantástico de se promover bem estar social. Mas mercado concorrido não cai do céu:

[Os liberais] sabiam melhor que todos os seus críticos posteriores que não era por mágica, e sim pela evolução de “instituições bem construídas,” onde “as regras e os privilégios de interesses opostos e vantagens negociadas” seriam reconciliadas, que canalizou exitosamente esforços individuais para objetivos socialmente benéficos. (Hayek, 1960)

Muitas vezes, mercados concorridos não são possíveis nem com boa regulação. É o caso dos setores em que os custos marginais são baixos em relação aos fixos. Por que? Porque para se cobrir custos fixos altos é preciso vender muito. Se os custos variáveis são baixos, quem tem escala pode jogar o preço lá embaixo, operando com margens suficientemente pequenas tal que a entrada de outros no mercado não seja possível. Cria-se uma barreira de entrada. São chamados de oligopólios naturais. É o caso de telecomunicações, serviços financeiros e o setor de energia. A solução que se deu até este momento, em quase todos os casos, no Brasil e no mundo, foi criar uma agência reguladora. Já sabemos o que aconteceu com a Anatel; é muito fácil para um oligopólio cartelizar-se na captura do Estado. Eles competem entre si, mas na hora de aprovar leis que os beneficiam, estão no mesmo barco. E não é só no Brasil. Seria ingênuo acreditar que os reguladores do setor financeiro nos EUA não tivessem a menor ideia do que os bancos e as seguradoras estavam fazendo com as hipotecas subprime. O que fazer então?

A solução liberal

É tudo uma questão de equilíbrio, de pesos e contrapesos (Montesquieu, 1748). Friedman (1951) explica:

Neo-liberalismo [… b]uscaria usar a competição entre os produtores para proteger os consumidores de serem explorados por eles, a competição entre os empregadores para proteger os trabalhadores e os proprietários, e a competição entre os consumidores para proteger os próprios empreendimentos.

Como porém se faz o contrapeso a um oligopólio natural? Se disse concorrendo com uma estatal, acertou. Estatais não são perfeitas, e também são passíveis de captura, tanto pela classe política, quanto pelos funcionários. Porém é exatamente por isso que funcionam como contrapeso; operam sob uma lógica diferente. Os gestores da estatal estarão sempre alertas quanto a abusos das oligopolistas privadas, e vice-versa. Quem é um bom administrador de empresa sabe fazer a mesma coisa com suas equipes, para que não fique refém de nenhuma delas.

Funciona? No setor financeiro brasileiro funciona. Em 2011, após ter alertado inúmeras vezes aos bancos que deveriam reduzir os seus spreads obscenos, a presidente instruiu aos bancos públicos a liderar o movimento, e os privados, por concorrência, tiveram que segui-la. Se esta foi uma decisão acertada são outros 500; o fato é que foi efetiva.

O erro então das privatizações na gestão FHC foi ter privatizado ao invés de ter simplesmente aberto os mercados e o capital das estatais. Acertou ao fazer isso com a Petrobras. O problema aí foi não ter aberto o mercado suficientemente para que de fato a Petrobras tivesse concorrência.

A Petrobras deve ser privatizada?

Não. Além do setor de energia ser um oligopólio natural, o petróleo é o lastro das moedas no mundo. De acordo com o FMI, a dívida pública dos EUA é maior que o seu PIB. Por que então ela é tão sólida? Porque é a moeda padrão de liquidação dos contratos de petróleo no mundo. Por isso está tão frequentemente envolvido em guerras no Oriente Médio. Não é pelo petróleo em si; só 13% do que os EUA importam de petróleo vem da Arábia Saudita. Por isso também que as maiores empresas do petróleo do mundo – Saudi Aramco, Gazprom e Empresa Nacional de Petróleo do Irã – são estatais.


FRIEDMAN, Milton, Neo-Liberalism and Its Prospects, Farmand, 17 fevereiro 1951, pp. 89-93.

HAYEK, Friedrich A. The Constitution of Liberty, 1960.

MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. 1748.

RAND, Ayn. Capitalism: The Unknown Ideal, 1966.

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