Em defesa de Feliciano

Em defesa de Feliciano


Em defesa de Feliciano

Voltaire (1694 – 1778)

Temo a unanimidade. Alem de ser burra, como já nos ensinava o Prof. Rodrigues, é também tirânica. Por isso venho aqui defender o deputado Marco Feliciano. Por isso e porque prezo acima de tudo o direito à liberdade de opinião e expressão. Não compartilho de todos os seus valores nem tampouco sigo a sua fé. Mas, prezo a pluralidade de pontos-de-vista e a diversidade de tradições. Por isso venho aqui defendê-lo.

Feliciano se tornou o símbolo de todo um setor da população brasileira. Muitas das críticas que a ele são dirigidas valem para os brasileiros que ele representa. Ele é um ícone, um avatar. Da mesma forma, defendê-lo é defender essas pessoas. Não necessariamente advogar em favor de seus interesses, mas sim defender o seu direito de fazê-lo.

Que fique claro: tudo isso tem que permanecer dentro da ética e da lei. A liberdade de um termina onde começa a do outro. A minha liberdade de expressão está limitada a não caluniar, difamar, injuriar ou causar prejuízos e danos morais a alguém (Lei nº 5.250/97). E Feliciano, segue os mesmos preceitos? Não importa. O crime de um não compensa o do outro.

Muito do repúdio a Feliciano deriva dos valores que ele advoga. Os valores da sua igreja não são compartilhados por todos os brasileiros. Em particular não são compartilhados por aquelas camadas da sociedade brasileira com maior acesso à educação, à informação e às tendências no mundo. São médicos, publicitários, engenheiros, advogados, professores universitários… e jornalistas. Não é surpresa então que a imprensa esteja tão unanimemente contra ele e tudo o que ele representa.

Mas, como se diz no interior, “muito a leste já é oeste”. Ao repudiar os seus valores, suas propostas, os críticos exageram, e acabam por solapar os valores e direitos que pretendem advogar: a liberdade sobre si, sobre o próprio corpo, sobre a escolha de parceiros, e de culto. Acabam por abusar do poder que têm às suas mãos sobre os canais de comunicação, e assim fazem o mal. Sobretudo, a si mesmos.

Ao cometer este abuso, desvendam suas aversões, seus preconceitos. Pois Feliciano representa não só um conjunto de valores, como todo um setor da nossa sociedade. Seus críticos reconhecem isso, e acabam por tingir seus ataques com as cores das suas próprias lentes. Assim, se entregam, abrem a própria guarda e perdem a razão.

Feliciano e o povo que ele representa, política e simbolicamente, são uma afronta ao que muitos de nós entendemos por ‘ser brasileiro’. Seus valores, seus comportamentos, suas escolhas são muito diferentes, alienígenas até. Não coadunam com a imagem que temos do Brasil. E que imagem é essa? Sim, é esta registrada nos jornais, revistas, na televisão. É a imagem que enxergam aqueles que produzem e consomem a mídia brasileira. Quem são estes? Os mesmos acima: gente educada, antenada… e que desconhece o Brasil. Nesse sentido, ignorante mesmo, pois ignora o brasileiro, em ambos os sentidos. Por exemplo, falou-se muito das recentes passeatas, que chegaram a juntar 200, 300 mil pessoas só em São Paulo e no Rio. Pois bem, participaram da Marcha para Jesus tanto no Rio de Janeiro¹ (25.05.2013) quanto em São Paulo² (29.05.2013), semanas antes das manifestações, nada menos que meio milhão de fiéis… em cada uma das cidades!

Nas últimas duas décadas a parcela de evangélicos entre os brasileiros dobrou de 9 a 18,1% (IBGE). Em número de pessoas, quase triplicou de 13,2 a 34,6 milhões. E não é de hoje. Desde 1940 que o número de evangélicos no Brasil cresce linearmente 5% ao ano. Enquanto isso, no mesmo período, o total da população brasileira cresceu em média 2,2% anualmente. O resultado é o crescimento da participação deste setor da nossa sociedade: 2,7% ao ano.

Este crescimento, que agora alcança níveis expressivos, é evidente pela sua presença e representatividade. Primeiro eram estações de rádio, obscurecidas pela falta de um tubo de imagem; agora são todas as cores dos canais de televisão. Primeiro eram igrejas simplórias espalhadas pelas periferias, longe dos olhos e interesse da mídia consumida pelas classes médias e altas; agora são grandiosos edifícios já avançando sobre as áreas nobres das cidades, tomando pontos comerciais e competindo por um espaço que não lhes era de direito. Primeiro tinham líderes que fraquejavam perante a sociedade, sem muito preparo além da própria religião; agora são pastores fortes, desenvoltos, com grande capacidade de gestão e interlocução. Primeiro era gente pobre, impotente e sem representação; agora é gente influente que elege vereadores, deputados e até bancadas inteiras.

Lhes apresento então o deputado Marco Feliciano. Já o conhecem; eu sei. Mas, os apresento-o de novo para que o reconheçam sob esta luz. Ainda não? Nada de novo? Ok. Vamos a elas então. Cartas na mesa; pratos limpos.

“Feliciano faz chapinha”
O que significa? Mesmo, mesmo? É claro que todo mundo sabe o que é “chapinha”. Mas, o que significa apontar isso? Por que é relevante? Afinal, tem muita gente que faz chapinha. Faz chapinha, faz escova, faz botox, faz unha, cabelo, barba, tatuagem… De que importa? Não é cool. É cafona. (Ainda se usa? Talvez o uncool seja eu.) Enfim, não é in. Tá por fora; “não nos representa”. Não nos representa mesmo! E nem quer!! Você sabe, eu sei, ele sabe e os seus eleitores sabem quem ele representa. (E, olha, já isso é uma vantagem.)

Ter cabelo de crioulo não é o problema; já é cool ser negro no Brasil (finalmente!). O problema é dissimular isso; esconder. O cool é assumir a própria identidade; demonstrar individualidade. Até criar individualidade onde ela não existe; personagens mesmo. Por que? Porque é próprio do ser urbano, que compete por espaços e oportunidades através da sua diferenciação, da sua ‘criatividade’. Essa digressão não é para antropologar ou sociologizar a conversa, mas simplesmente apontar que nossos valores, sejam quais e de quem, não são absolutos; são dados pelo seu meio, pelo que existe ao nosso redor e dentro de nós.

Porém, embora não seja mais cool discriminar negros no Brasil, discriminar aqueles que não assumem a sua negritude é. E essa assunção tem que ser feita em certos moldes; não é qualquer coisa. Chapinha, por exemplo, não vale. Coincidentemente, aqueles que fazem são justamente os mesmos negros que antes não tinham o acesso à informação e à última moda de Londres ou Nova Iorque. Continuam discriminados; “same shit, different day”.

“Feliciano é gay”
Qual o problema aqui? É? Não é? Que diferença faz? Obviamente que não é UNcool ser gay. O cool é ser a favor do casamento homossexual. De novo, da liberdade de mostrar sua individualidade, de se personalizar. Então qual é? Bom, seria contraditório, é claro. Os valores que Feliciano representa consideram relações homossexuais uma abominação (Levítico 18:22). E não é só ele ou os evangélicos; apenas 8% dos brasileiros se identifica como sem religião. Entre evangélicos, católicos, judeus e muçulmanos – todos têm este mesmo verso em sua liturgia – somam-se 158 milhões de brasileiros (83%). Portanto, aviso aos navegantes dos canais de comunicação: devagar com essa louça.

De volta a Feliciano, se ser gay não é uncool, qual é o problema? Novamente ele estaria escondendo sua ‘real’ identidade, seu ‘verdadeiro eu’. Estaria “dentro do armário”. Not cool. De aí, a coisa degringola e novamente o tiro sái pela culatra. Porque Feliciano não é só gay; ele é boióla, mulherzinha, boneca… Terrível, não? É cool ser gay, mas ser gay não é cool. Homofobia igual, “different day…”

Poucos se lembram, mas nada disso é novo. O preconceito aos evangélicos é uma tradição antiga no Brasil. Só que antes eram chamados de crentes. Os crentes eram reconhecidos por serem gente simples, da roça, as mulheres por seus cabelos muito compridos, muitas vezes analfabetos e… crentes. Isto é, crédulos, manipulados, caipiras, ingênuos (a denotação é outra, mas a conotação era esta). Até o começo do século XX os evangélicos eram segregados em escolas separadas, e às crianças católicas não lhes era permitido misturarem-se com eles. Não podiam nem mesmo enterrar seus mortos nos mesmos cemitérios. Quando muito, eram enterrados em um ‘apartado’ junto com prostitutas, suicidas e vítimas de epidemias.

O mais incrível na versão atual deste velho preconceito contra os evangélicos é que ele caducou. Ficou completamente fora de contexto; contradiz diametralmente os valores daqueles que os discriminam. Estes parecem não se darem conta que os evangélicos daqui são os mesmos protestantes que predominam nos EUA e nos países do norte europeu, os quais tanto admiramos. Não se apercebem que vários de seus próprios heróis eram evangélicos; ou não sabiam que Martin Luther King Jr. era um pastor evangélico?

Isso não é dizer que não se possa fazer críticas. Feliciano erra, e sua fé será a primeira a isso lhe apontar. Cabe o debate, cabe discutir idéias, cabe comparar valores. Mas não cabe cercear o direito de opinião, expressão e fé do outro. Este direito, garantido na constituição brasileira, eu defenderei até o fim dos meus dias.


 

Fontes
¹ “Marcha para Jesus reúne cerca de 500 mil pessoas no Rio”, Jornal Nacional, 25.05.2013.
(http://glo.bo/1U5oPaO)

² “Marcha para Jesus reúne 500 mil e tem a presença de Feliciano em SP”, O Estado de São Paulo, 29.05.2013.
(http://bit.ly/25E9JwQ)

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