Tarifa zero: dá para fazer?

Tarifa zero: dá para fazer?


Artigo primeiramente publicado no Yahoo!Finanças.


Perth, Sydney e Melbourne (na Austrália), Calgary (Canadá), Sheffield, Rotherham e Bradford (Inglaterra), Havaí, Portland, Baltimore e Seattle (EUA), e Bangkok (Tailândia). O que têm em comum estas cidades? Todas elas oferecem algum transporte público gratuito. Estas e mais 40 cidades ao redor do mundo [17]. Isto é o que quer o Movimento Passe Livre (MPL), e mais 39 organizações em vários países, do México à Nova Zelândia. O seu argumento? Artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas: “Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado.”

E isso significa o quê, que o governo deve “dar” o transporte à população como quem dá um presente? Com que dinheiro?? Afinal metrô e ônibus não dão em árvore. Transporte custa, e não custa pouco. De 2ª a 6ª em São Paulo, 3 milhões usam o metrô [1], 8,6 milhões tomam ônibus [2] e 2,3 milhões viajam em trens metropolitanos [3]. Movimentar mais de 10 milhões de pessoas diariamente, já contando os que tomam mais de uma condução para chegar ao trabalho, não é tarefa corriqueira. São 15,025 ônibus em 1,321 linhas cobrindo 19 mil paradas [2], 900 vagões de metrô servindo 58 estações através de 65,3 km [1], e 127 trens fazendo 2.628 viagens diárias por 260,8 km interligando 89 estações [3]. Já em 2007, o sistema de ônibus de São Paulo era o mais complexo do mundo, segundo Erico Guizzo, Editor Sênior da Revista Spectrum do IEEE (Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos), a maior e mais renomada associação de engenheiros do mundo [4].

Mas quem vive em São Paulo sabe que não é o suficiente. Não é preciso nem comparar com os sistemas de Nova Iorque, Paris ou Londres; a extensão do metrô da maior metrópole da América Latina é inferior a dos de Tehran, Santiago e Delhi [5]. Se cobrando a passagem o transporte público de São Paulo já é super-lotado, imagina o que seria então se a passagem fosse gratuita! E com que dinheiro se pagaria a sua extensão? Será que os moradores de rua, estes que moram debaixo das pontes, não se mudariam para as estações?

O intuito da tarifa zero, além do da redistribuição de renda, é o da sustentabilidade, incentivando pessoas que hoje usam o carro a usarem o transporte coletivo. Mesmo, na Alemanha onde, por exemplo em Munique, a passagem pode custar de R$7,00 a R$14,00, Herbert Baum mostra no Journal of Transport Economics and Policy que, mesmo que fosse gratuita, a demanda pelo transporte público não se alteraria [7]. Pior: poderia até diminuir. Se o passe fosse realmente livre, o que impediria que as estações fossem ocupadas por indigentes? Já hoje, muitos dos que moram na periferia, onde só a CPTM a chega, preferem pegar um ‘lotação’ a dividir o espaço com “gente grosseira” [8].

Estas são só alguns dos problemas na experiência da tarifa zero em cidades americanas apontados pelo Centro Nacional para a Pesquisa do Transporte (NCTR) na University of South Florida [9]. E no Brasil, pagar R$3,00 ou R$3,20 faz alguma diferença para quem anda de carro? O que realmente afasta os motoristas do transporte público é a baixa qualidade e falta de comodidade do serviço. E não é só no Brasil, como aponta Richard Allsop, ex-chefe de gabinete da Secretaria dos Transportes do Estado de Victoria na Austrália [10].

Os ‘zeristas’ contra-argumentam. O transporte público não é melhor porque quem o usa são justamente aqueles com menor poder de influenciar as políticas públicas. Não são os empresários, profissionais liberais, pais e mães que levam e buscam seus filhos na escola e nem tampouco gerentes de loja e de empresas. São aqueles que percorrem até 60 km para ir e voltar do trabalho todos os dias. São aqueles que nadam todo dia contra um mar de gente para simplesmente ganhar seu pão e lutar pela sobrevivência da sua família. Chegando em casa, não têm nem fôlego, o que se dirá voz. Se mais pessoas o usassem, talvez fosse melhor. É um paradoxo; qual será o segredo de Tostines?

Dois coelhos. Quem defende a tarifa zero sabe que o dinheiro tem que sair de algum lugar, é claro. O que propõe é que o transporte público seja pago pelo contribuinte, não pelo usuário. Afinal, imagine se ao discar 190 se ouvisse uma gravação: “por favor, ao ouvir o tom, digite o número do seu cartão de crédito, e seu pedido de socorro será atendido”. Quer dizer que a proposta é aumentar os impostos? É. Mas o Brasil já tem uma das maiores cargas tributárias do mundo! Tem mesmo? Os governos brasileiros arrecadam 32,5% da renda nacional, menos que 25 outros países incluindo Reino Unido, Portugal, Espanha, Israel, Alemanha, Áustria, Itália, Noruega, Islândia, Holanda, França, Suécia, Bélgica, Dinamarca, Hungria, Finlândia, Estônia e até a Argentina [11].

Quer dizer que o trabalhador deixa de pagar passagem para pagar o mesmo, ou até mais, em impostos! Não necessariamente. Se o transporte público for subsidiado pelo IPTU por exemplo, o subsídio virá de quem mora e trabalha nas áreas mais valorizadas da cidade. O que tem haver o IPTU com transporte público? Muito.

A Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) calculou que 25% de toda a área construída da cidade de São Paulo é ocupada por carros [12]. Em março deste ano, segundo o DETRAN, 5,3 milhões de veículos trafegaram pela cidade [13]. Se cada carro ocupa em média duas vagas, são 10,6 milhões de vagas. E se cada vaga pagar pela condução diária de duas pessoas, ninguém precisa mais pagar para ir trabalhar. E, considerando-se a economia na emissão, administração e cobrança de passagens, na instalação e manutenção de catracas, e o espaço poupado dentro dos próprios ônibus, ainda sobra dinheiro para melhorar e expandir o sistema.

Onde já se viu isso, vaga de carro pagar passagem de ônibus? Em Melbourne, na Austrália. Cada vaga na cidade de Melbourne, seja em prédio comercial ou estacionamento pago, paga A$1,300 ao ano que vai diretamente para o subsídio e melhora do transporte coletivo [14]. Mas os estacionamentos em São Paulo já são um absurdo de caros e isso vai encarecê-los ainda mais! São? Não de acordo com o Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada (IPEA) [6]. E ficariam mais caros? Sem dúvida. É justamente assim que se pretende desincentivar o uso do carro na cidade. Mas as pessoas já viajam apertadas como sardinhas nos ônibus e metrôs, como vão comportar ainda mais? Com mais ônibus. Não é isso que todos querem, os que usam e os que se recusam a usar; mais e melhores ônibus, mais linhas, maior cobertura? No espaço que cada carro compacto ocupa na rua, cabem 17 pessoas dentro de um ônibus convencional [15]. Comparado à capacidade de ônibus articulados e biarticulados, então, ainda mais.

Ok, na teoria pode até funcionar, mas será que vai funcionar no Brasil? Já funciona. Em Agudos e Porto Real, e há mais de uma década. Ah, mas essas são cidades pequenas; não dá nem para comparar com São Paulo. Tem alguma capital, por exemplo, que oferece tarifa zero para todo o sistema? Tem. Em Tallinn, capital da Estônia, a partir deste ano o uso do transporte público é gratuito para todos, 24 horas por dia, sete dias por semana. Ahá, então é uma proposta nova! Na verdade, não. Foi apresentada em 1990, já há mais de 20 anos, pela própria Secretária dos Transportes do Município de São Paulo. A Câmara nem chegou a discuti-la. Agora caberá a nós fazê-lo.

[1] http://bit.ly/2bHLvNF
[2] http://bit.ly/2bWh7Cq
[3] http://bit.ly/2bHNjGc
[4] http://bit.ly/2bWh21Q
[5] http://bit.ly/2bHM8H2
[6] http://bit.ly/2bWgoBu
[7] http://bit.ly/2bHLPMw
[8] http://fdot.tips/2bWh4qi
[9] http://bit.ly/2bHMuxn
[10] http://bit.ly/2bWh4GO
[11] http://bit.ly/1CPz0tO
[12] http://bit.ly/2bWhe0L
[13] http://bit.ly/2bHLZmM
[14] http://bit.ly/2bWgjxC
[15] Uma de ônibus convencional ocupa 54 m², 4,5 vezes mais que uma de um carro compacto ( em média 12 m² ). Um ônibus convencional comporta 75 pessoas, portanto o espaço equivalente ao de um carro comporta 4,5 vezes menos, 17 pessoas.
[16] http://bit.ly/2bHMmOb
[17] http://bit.ly/2bHMvS1

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