Reforma política: pior que está não fica?

Reforma política: pior que está não fica?


Contramao

Quando todos concordam, o santo desconfia. Afinal. “a unanimidade é ____”. Como vimos aqui, a reforma política está na agenda política brasileira há mais de 1/4 de século [7]. Finalmente ela está avançando. Mas qual reforma política queremos fazer? Qualquer mudança é boa? Pior que está não fica? Aqui estão sete propostas de reforma política tramitando no Congresso contra as quais sobram razões para se opor.

Voto facultativo

O voto já é facultativo no Brasil. É sim! Não quer votar? Basta justificar. Não custa mais do que um selo; o formulário está disponível gratuitamente no site do TSE. E temos 60 dias para fazê-lo! Se dois meses não for tempo hábil para enviar uma carta, basta pagar a pesada multa de R$3,51 no cartório eleitoral. Isso praticamente não é multa; é taxa administrativa. Multa é o que se cobra na Austrália: até R$600! Ah, sim, porque em nenhum país desenvolvido o voto é obrigatório. Só que não. Nova Zelândia idem.

Talvez a questão seja o nome: justificar. O problema de não exigir que o eleitor justifique a sua ausência do pleito é que não sabemos se ele se ausentou por livre e espontânea vontade, ou se foi coagido a não votar. Isso não é nada abstrato e impossível no Brasil em que o coronelismo ainda é muito presente em grande parte dos municípios. E isso não é problema de país subdesenvolvido, como pôde o mundo testemunhar nas eleições presidenciais de 2000 nos EUA. Então imagina no Brasil. E imagina nas eleições municipais dos 6.567 municípios brasileiros. Quem mora em cidade grande no Brasil muitas vezes se esquece que 3 de cada 4 brasileiros mora em cidades menores que Macapá, e mais da metade em cidades menores que Araruna. Com tanta facilidade para justificar a ausência, a justificativa é na verdade nada mais do que confirmação por escrito de que a ausência foi espontânea.

Financiamento público

Financiamento público de campanha já existe. No pleito de 2014 o contribuinte pagou só de horário eleitoral R$839 milhões às emissoras de rádio e TV [1]. E isso não inclui o custo de produção da propaganda. Fora isso, ainda contribuímos com os fundos partidários, que também serve como incentivo para criação de legendas de aluguel. Então financiamento público é um eufemismo para restrição ou até proibição de financiamento privado. A intenção é louvável; sabemos que é o financiamento privado que subjuga a classe política aos seus credores (quando não as funde na mesma coisa). Porém, de boas intenções…

Toda criminalização abre espaço para a criminalidade. É preciso ter muita confiança de que o Estado será capaz de executar a lei para não fomentar a indústria do crime. Isso não é teoria; basta ver o caso das drogas. Proibição não é varinha de condão. O curioso é que quem defende a proibição do financiamento privado é tipicamente quem critica o proibicionismo das drogas, usando do mesmo argumento. Especialmente quando a capacidade do Estado de impor o cumprimento da lei está comprometida pela própria lógica do financiamento.

Havendo demanda por financiamento de campanha, não faltará oferta; o retorno das “doações” de campanha é 750% (Instituto Kellogg, [2]). Proibi-lo é como tentar segurar um tsunami com a palma da mão. Quem sai ganhando com a proibição não é o cidadão; é o traficante de influência, o laranja. Eleva o seu preço, tornando o seu “negócio” mais lucrativo e sustentável. Cria uma forte fonte de receita à industria do crime, que passa então também a ter mais capital para se diversificar sobre outras áreas. Será que não aprendemos nada com Al Capone?

Cotas para mulheres

É sério isso?? O Brasil é um dos poucos países do mundo que elegeu – e reelegeu! – uma chefe de governo mulher. O país que posa de estandarte da democracia no mundo nunca elegeu uma presidenta. A maior adversária da Dilma fora do seu partido é uma mulher, que foi ministra por 4 anos e senadora por 8. Sua maior adversária dentro do seu partido também é uma mulher, que também foi ministra – em duas pastas! – também foi senadora, além de deputada na Câmara Federal por 4 anos e prefeita da 2a maior cidade da América e 1a do hemisfério sul. E não foi a única. Além destas, a candidata à presidência mais votada entre os partidos ideológicos em 2014, fora do G3 como ela mesma batizou, é mulher. E recebeu três vezes mais votos que o segundo, único que apresentou uma candidatura claramente religiosa, no maior país católico do mundo, com a segunda maior população cristã e em que de cada 4 brasileiros 1 é evangélico.

É verdade que há muito menos mulheres na política do que homens. Mas será isso por alguma barreira que lhes é imposta, ou por simples falta de interesse? Basta passear pelos grupos de discussão sobre política nas redes sociais para perceber que as mulheres são espécie rara. O que lhes impede de participar? Nada. Realmente não se interessam. E tudo bem; ninguém é obrigado. As estatísticas do facebook mostram que as mulheres só começam a se interessar por política a partir dos 35 anos, i.e. depois da meia idade. Ou seja, quando começam a se interessar, já entram muito mais tarde no páreo. Algumas despontam, mas claro que são exceção. As três candidatas às eleições presidenciais de 2014, praticamente metade dos 7 principais candidatos, obrigatoriamente convidados aos debates na televisão, entraram na política desde cedo na sua juventude. Os homens também. É uma longa carreira. E não são cotas que vão encurtar este processo, se não há interesse para começo de conversa.

Unificação das eleições

Essa proposta é do Sarney. Mas não tenhamos preconceito. A proposta é que todas as eleições sejam unificadas num único pleito. Parece eficiente. Uma a menos para se preocupar, né? Afinal, fazer eleição em um país do tamanho do Brasil não sai de graça: R$1 bilhão por pleito [3]. Agora imagina: se os eleitores que têm acesso a todo tipo de informação e tiveram boa educação têm dificuldade de acompanhar, esmiuçar, analisar e escolher as propostas de inúmeros candidatos à presidência, aos governos de estado, às prefeituras, ao Senado, às Câmaras estaduais e federal, e às Assembléias municipais, imagina a minha avó! Fora os 70 milhões de eleitores – metade! – que não têm acesso à internet. E os milhões de analfabetos funcionais! Devagar com essa louça. Ter pleitos a cada dois anos tem sido enormemente benéfico ao Brasil para politizar e desenvolver a cidadania após 21 anos de ditadura e 500 anos de escravidão – 400 de plena e 100 de semi – para a maioria da população. Pelo contrário, ao invés de embolar os pleitos, se fosse para mudar alguma coisa, o que seria realmente útil é separar as eleições aos cargos Executivos das aos cargos Legislativos. Estes não recebem nem uma pequena fração da atenção nas campanhas. Eleições a cada dois anos permitem também muito maior participação da cidadania na democracia através de plebiscitos incluídos em cada pleito.

Voto em legenda no primeiro turno

Esta é uma proposta da MCCE/OAB apoiada pelo CNBB e pela Dilma. Propõe-se que no primeiro turno o eleitor vote no partido, e no segundo no candidato. No primeiro turno ficaria definido o número de cadeiras de cada partido, e no segundo quais candidatos irão ocupá-las. A intenção é enfatizar os programas partidários no primeiro turno, e desenfatizar os personalismos. Louvável. Mas, de novo, de boas intenções… Se no segundo turno o número de cadeiras já estiver definido, com quem os candidatos de cada partido estarão competindo? Com seus pares de partido! E como se entende que o programa partidário é apoiado por todos seus candidatos, só lhes resta competir por competência e idoneidade. Ou seja, só sobrará lavação de roupa suja e ad hominem. Pior, se para o eleitor o que importa é o programa do partido, como se almeja, ele será indiferente a quais dos candidatos do seu partido entrarão para o defenderem. O seu interesse será outro: enfraquecer os partidos adversários votando nos seus candidatos mais fracos para bloquear os mais fortes. Ou seja, o resumo da ópera é que no primeiro turno o eleitor vota no seu partido, e no segundo em candidatos do partido adversário, que concorrem difamando-se ainda mais do que se difamam hoje os políticos em campanha. É bizarro.

Voto distrital

Há um certo fetiche pelo voto distrital no Brasil. É coisa de país desenvolvido: Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Austrália… Mas a preferência nacional é o distrital misto da Alemanha. Traz o representante eleito para mais perto do eleitor, argumentam. Em pleno século XXI?! Onde você está lendo este texto? Te surpreenderia saber que o seu autor mora do outro lado do mundo? Aposto que não. Já estamos acostumados com a proximidade virtual. Aliás, muitos já somos mais próximos de gente que conhecemos nas redes sociais, que dos nossos próprios vizinhos. Uns até se tornam grandes amigos, sem jamais terem estado no mesmo recinto. Então, corta essa.

Next: reduz os custos de campanha. Se proximidade física não mais representa proximidade de relação, este argumento também vai por água abaixo. É verdade que mais da metade dos custos de campanha vão para a produção da propaganda política na TV, e que isso se faz necessário pela distância. Porém já passa da hora de eliminar o horário eleitoral “gratuito” (entre aspas porque é na verdade pago pelo contribuinte, a preço cheio de tabela, e no horário nobre!). Esta sim seria uma reforma política que faria uma enorme diferença, apesar de ser uma mudança aparentemente inofensiva.

Mas é ruim o voto distrital? É. Enquanto no Brasil se discute a adoção do voto distrital, nos EUA e GB discute-se a adoção do voto proporcional. Por que? Primeiro porque o distrital dá mais peso às questões locais em detrimento das nacionais. Nessa mesma toada, elimina qualquer chance de representação dos diversos segmentos da sociedade, concentrando o espectro político em dois partidos, com um eventual terceiro, que ora segura vela, ora privilegia-se de ser o voto de Minerva. Isso se chama bipartidarismo, como nos EUA entre Democrats e Republicans, na GB entre Tories, Labour e Liberal Democrats, e na Austrália entre Liberals, Labour e Greens. Até isso se vê com brilho nos olhos no Brasil. Uma mistura potente de grama do vizinho com viralatismo.

Cláusula de barreira

O Brasil tem partidos demais. Tem? São 32. É muito? Nos EUA tem 35. E na Austrália 50! Ah, mas majoritários são dois. Três no máximo. E no Brasil, não? Quantos candidatos com votação expressiva havia nas eleições presidenciais de 2014? E 2010, 2006, 2002? O Brasil não tem partidos demais. Tem legendas de aluguel, isso é verdade. Por que? Porque servem para vender minutos do horário político. Mas se não houvesse horário político… Mais uma razão.

Time que está ganhando…

A verdade é que no último quarto de século, o Brasil tem apresentado um dos sistemas políticos mais estáveis entre as grandes democracias do mundo. Nas eleições federais de 2009 na Austrália, o número de parlamentares eleitos de cada partido empatou, e os australianos ficaram 3 semanas sem saber quem iria governar o país [4], até que negociassem uma maioria no parlamento. De 2009 a 2011, a Bélgica ficou quase 2 anos com um governo provisório [5]! Nos EUA o governo quase fechou as portas em outubro de 2013 porque o Congresso se recusava a aprovar o orçamento do Presidente [6]. De fato, muitos ficaram semanas sem receber!

Ao mesmo tempo em que é muito mais estável, o sistema político brasileiro oferece ampla representação nos parlamentos em uma das nações mais numerosas e heterogêneas do planeta, não só em etnias e valores, como em estratificação social. E espalhada por um país de dimensões continentais, que vai da floresta amazônica até os pampas gaúchos. Ao mesmo tempo em que a representação é ampla nos parlamentos, o sistema político criado pelos constituintes de 1988 não permite que o chefe do Executivo governe fora do centro político. Nada mais democrático. E eficiente. Um sistema que permite amplas oscilações ideológicas no Executivo está fadado a criar crises institucionais; a cada pendulação as políticas públicas são interrompidas e outras começadas, sem que nunca tenham tempo de amadurecer.

E a eficiência se estende à agilidade dos parlamentos brasileiros. A impressão de muitos é que os Legislativos brasileiros são morosos. Mas isso é ansiedade de quem não está acostumado com o processo democrático. Claro, na ditaduras as coisas andavam muito mais rápido. Quando nos damos o trabalho de ouvir a todos nessa sociedade diversa, o processo é naturalmente mais lento. E nem é tão lento assim. A Reforma do Estado feita na gestão Fernando Henrique fez mudanças profundas no regimento das instituições brasileiras. Os presidentes dos EUA, por exemplo, tanto Republicanos como Democratas, vêm há mais de 40 anos, desde Reagan nos anos 80, tentando reformar o seu insustentável sistema de previdenciário, com poucos sucessos.

O fio da meada

A essa altura do campeonato todo mundo já entendeu que a raiz de toda a corrupção no Brasil, tanto no setor público quanto no privado, é o custo das campanhas eleitorais. É isso fundamentalmente que subverte a lógica do sistema político. A dependência dos políticos por financiamento substitui o apoio político pelo apoio financeiro como moeda de troca nos parlamentos e entre os poderes. Ao fim e ao cabo, quem realmente governa é o cifrão e não o voto. Enquanto isso não for resolvido fica até difícil fazer uma avaliação completa da qualidade do sistema. E não é qualquer mudança que resolverá o problema. Pior que está não fica? Ah, fica… Ô se fica!

[1] Horário eleitoral custará R$ 839 milhões aos cofres públicos
[2] Empresa que doa dinheiro a político tem retorno de 750%
[3] Plebiscito poderá custar R$ 500 milhões aos cofres públicos
[4] 2010 Federal Election: a brief history
[5] Eurozone crisis forces Belgium to finally form a government
[6] U.S. government shuts down as Congress can’t agree on spending bill
[7] Por que a reforma política está atolada há 26 anos?

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