Escravos de jaleco

Escravos de jaleco


Primeiro não faltavam médicos; eram desnecessários. Depois eram enfermeiros. Não, guerrilheiros. Ah, sim, escravos! Afinal, quem são esses cubanos que chegam por aí?

Já não é de hoje que Cuba envia esses “médicos escravos” ao redor do mundo. De fato, faz isso já há 50 anos, desde 1963, quando Che Guevara, um médico argentino, os enviou à Algéria para repor os médicos franceses que haviam se ido na guerra da independência. Nos 37 anos seguintes, Cuba enviou 67 mil agentes de saúde a 94 países (De Vos et al, 2007, International Journal of Health Services). Só em 2007, havia 42 mil em 103 países (Huish & Kirk, 2007, Latin American Perspectives). No Brasil isso também não é novidade. Temos médicos do programa atuando no Tocantins desde 1997. Em 1999, tendo verificado que 850 dos 5.507 municípios brasileiros não tinham agentes de saúde, Serra foi pessoalmente à Cuba pedir mais. Na época, o presidente do CFM, Edson de Oliveira Andrade, afirmou que a entidade é contra a regulamentação do trabalho de médicos estrangeiros no Brasil (Folha de SP, 15.01.2000). Mas, os médicos ficaram até 2005, quando o CFM conseguiu que o juiz da 1ª Vara do Tocantins proibisse o trabalho dos 96 médicos cubanos no estado. Uma semana depois o presidente do TRF suspendeu a decisão, e 35 médicos foram recontratados.

Cinquenta anos, 103 países, 67 mil escravos… e nenhum protesto na Organização Internacional Trabalho (OIT)? Nem na Anistia Internacional? E o Human Rights Watch, nada? Estranho. Os únicos resultados da busca por “cuban doctors” no ilo.org falam de médicos cubanos suprindo a carência na África do Sul. País, aliás, que tem enviado 1.200 alunos ao ano para estudar medicina em Cuba, e pretende triplicar o número. Cuba forma 11 mil médicos por ano, 6 mil dos quais são enviados por outros países. O Brasil forma 13 mil, e de 2000 a 2012 absorveu 5.458 estrangeiros, i.e. 420 por ano (Relatório da Demografia Médica, CFM, 2013). Segundo Stephen Morrissey, Ph.D., editor-chefe do New England Journal of Medicine, a formação médica em Cuba é generalista, mais focada em atendimento básico e preventivo (nada muito excitante ou lucrativo no Brasil). “A Saúde cubana é bem organizada e a prevenção é a primeira prioridade. Embora Cuba tenha poucos recursos, seu sistema resolveu problemas que o americano ainda não solucionou”, ele atesta (NEJM 2013; 368:297-299).

Diz o CFM que temos médicos suficientes. Pode ser; temos 2 para cada 10 mil pessoas. A Argentina tem 3. O problema é que eles não estão bem distribuídos. “Nove capitais têm mais de 5 médicos por mil habitantes, razão acima da média dos países ricos da União Européia”, diz o próprio CFM. De fato, MG tem mais médicos por habitante que Cingapura, RS tem mais que o Japão, SP mais que os EUA, RJ mais que a Dinamarca e DF mais que a Suíça. Enquanto isso, “a relação médico habitante por estado ou região é insuficiente para caracterizar a penúria de municípios longínquos, de difícil acesso, com carência severa de profissionais e, portanto, sem assistência médica permanente”, alerta o mesmo CFM. Por que isso? Mais uma vez, o CFM tem a resposta: “a permanência na cidade onde o médico se formou é motivada sobretudo pelas perspectivas que os grandes centros oferecem”. Ou seja, o médico que se muda para longe dos grandes centros corre o risco de se desatualizar e perder oportunidades de crescimento na sua carreira. De fato, de 1985 a 2013, o número de médicos por pessoa no interior dos estados caiu 24%. Por isso o CFM reivindica o tal “plano de carreira”? Não, isso são outros 500. Plano de carreira no serviço público significa aumentos salariais programados. Não tem nada a ver com excelência profissional.

Não só os médicos vão para a cidade, como preferem atender paciente particular. É novamente o próprio CFM quem nos conta que “levantamentos já revelaram o fluxo para o setor privado, de médicos formados em universidades públicas e em programas de Residência Médica financiados com recursos públicos”. Faz sentido. O gasto em saúde no Brasil é dividido metade, metade entre o SUS e o particular (OMS 2012). Só que só 1/4 da população tem acesso aos planos privados (IBGE 2010). Logo, um paciente no plano rende 3 vezes mais que 1 no SUS. Faz sentido mesmo. Só não é humano. Mas isso são outros 500.

O post Escravos de jaleco apareceu primeiro em O Contráditorio.

Comentários