Libertarianismo enlatado
Ronald Reagan foi eleito presidente em 1980, iniciando nos EUA e no mundo, junto com Margareth Thatcher na GB, uma era de grande avanço do conservadorismo. Houve um grande recuo do Estado no amparo social. Foi então que se cunhou o termo Reagonomics, também conhecido como trickle down economics. É a idéia de que reduzir os impostos dos mais ricos, com o corte dos programas assistenciais, é bom para todos, pois eles vão investir mais e gerar mais empregos. É uma ideia atraente, porém o resultado foi a mais rápida concentração de riqueza da história humana até então.
Concomitantemente, Reagan ampliou exponencialmente o Estado policial. De um lado, retomou a Guerra “Fria”, relegada por Carter, que só acabou com a queda do muro de Berlin em novembro de 1989 (ou melhor, teve uma pausa). Do outro, intensificou a Guerra às Drogas, iniciada por Nixon, que junto com a privatização do sistema carcerário, criou a maior população carcerária do mundo – hoje em 2.217.000 – e a 2a maior taxa de encarceramento (depois das Ilhas Seychelles, com 7 de cada 1.000 residentes presos).
No mesmo ano em que Reagan foi eleito, havia uma outra candidatura ainda mais ousada no desmantelamento das instituições de amparo social: a do Partido Libertário. O candidato à vice-presidência por esse partido era então o jovem David Koch, com 40 anos, um dos patrocinadores do partido. Hoje, 35 anos mais tarde, David se tornou, empatado com seu irmão Charles, a 6a pessoa mais rica do mundo, com US$42,9 bilhões. Juntos, os irmãos compõem a 2a mais rica família do planeta, com US$85,8 bilhões, depois da família Walton, dona do WalMart.
A plataforma de David Koch em 1980 deverá soar muito familiar a muitos dos leitores:
- Fim da saúde pública
- Fim da educação pública e do Estado de Bem Estar
- Fim da seguridade social e das políticas assistenciais
- Fim do salário mínimo e das leis trabalhistas
- Fim de todos os impostos e total anistia à sonegação
- Fim de todas as leis de proteção ao consumidor e ao meio ambiente
- Desregulação total do setores de energia, transportes aéreo e terrestre, farmacêutico e alimentício
- Desregulação total do setor de seguros
- Privatização da água, das ferrovias, rodovias e hidrovias
- Fim de todas as restrições ao financiamento campanhas políticas e à propaganda eleitoral
Ela deve soar ainda mais familiar àqueles que se declaram “liberais” hoje no Brasil. Essa nomenclatura está redondamente equivocada, pois o que os liberais clássicos – John Locke (1632-1704), Adam Smith (1723-1790), Montesquieu (1689-1775), entre outros – defendiam em nada se parece com esta agenda. Adam Smith, por exemplo, era contra a privatização, ou até mesmo a concessão, de estradas (“Riqueza das Nações”, Vol. I, Cap III, Parte I, p. 786, 1776). E foi Montesquieu quem disse que “o livre mercado não é uma permissão para os mercadores fazerem o que quiserem” e que “o que restringe os mercadores não necessariamente restringe o mercado” (“O Espírito das Leis”, Vol. XX, 1748). As grandes referências destes “liberais” brasileiros – na verdade libertarianos (do francês libertarienne) – são Frèdèric Bastiat (1801-1850), Ayn Rand (1905-1982), Murray Rothbard (1926-1995), Robert Nozick (1938-2002) e o agora tão citado Ludwig von Mises (1881-1973). O uso do termo “liberal” tem aí o objetivo de se aproveitar do renome destes autores do século XVII e XVIII, associando-os, em moto contínuo, a autores que os precederam em pelo menos 150 anos, e descenderam de uma escola de pensamento completamente distinta (leia este outro texto se quiser se aprofundar nesta distinção).
Libertarianismo tropicalizado
A agenda libertariana, defendida por Koch em 1980, vem sendo propalada amplamente no Brasil, através das redes sociais, por uma nova geração de universitários das melhores universidades do país. A agenda encontrou solo fértil, arado e adubado por institutos ditos liberais que datam desde a década de 80 (Celeti, 2014). O mais antigo é o Instituto Liberal, fundado por Donald Stewart Jr. em 1983, 3 anos após a eleição de Reagan, e presidido hoje por Rodrigo Constantino. Donald era dono da construtora Ecisa, uma das maiores empreiteiras durante a ditadura militar (Campos, 2012), associada à construtora norte-americana Leo A. Daly na construção de escolas no Nordeste para a Sudene. A associação era uma exigência do seu credor, a USAid, agência de desenvolvimento americana, que funcionava como braço econômico da CIA durante as ditaduras latino-americanas (Perkins, 2004). Donald era sócio e afiliado a diversas instituições internacionais, são elas: Sociedade Mont Pèlerin, CATO Institute, Heritage Foundation, Atlas Foundation, Fraser Institute, Liberty Fund e Institute of Economic Affairs. Estes são todos think tanks libertarianos, que produzem conteúdo e propostas de políticas públicas, para promover os interesses dos seus afiliados. O CATO Institute, por exemplo, foi fundado por Charles Koch, irmão de David Koch.
No ano seguinte, em 1984, William Ling funda o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), que desde 1988 organiza o anual Fórum da Liberdade. William Ling, junto com seu irmão Winston, é dono da antiga Petropar, renomeada Évora em 2013. Winston, que também é fundador do Instituto Liberdade do Rio Grande do Sul, é pai de Anthony Ling, um dos fundadores do Estudantes pela Liberdade (EPL), onde germinou o Movimento Brasil Livre (MBL) de Kim Kataguiri.
Estas organizações foram então o fundação sobre a qual começou a germinar por volta de 2004 as organizações libertarianas na web. 2005 foi o ano em que Rodrigo Constantino começou a despontar, ainda no antigo Orkut, como um thought leader do movimento libertariano no Brasil. Em 2007, Erick Vasconcelos cria o seu blog Libertyzine, e Atlas Economic Research Foundation em cooperação com o Cato Institute cria o Instituto Ordem Livre (Celeti, 2014). Em 2008, Hélio Beltrão Jr., entre outros, funda o Instituto Mises Brasil (IMB), que ele hoje o preside e patrocina. Hélio é sócio-herdeiro do Grupo Ultra, dono dos postos Ipiranga e da Ultragaz, que cresceu astronomicamente durante o regime militar, e que é hoje a 4a maior empresa do país, e uma das únicas 7 brasileiras entre as 500 maiores empresas do mundo. No mesmo ano, Juliano Torres funda o Portal Libertarianismo, e mais tarde, em 2012, durante um seminário da Atlas no Brasil, ele encabeça a criação do EPL. O EPL é inspirado no Students for Liberty, organização do Cato Institute para disseminar a sua agenda entre estudantes universitários por todo o mundo. No Brasil, o EPL funciona como uma organização guarda-chuva para uma série de menores grupos organizados ao redor de publicações próprias, como Liberzone, Spotniks e Mercado Popular, além do IMB e do Portal Libertarianismo.
Think Tanking no século XXI
Estes sites e blogs são impecavelmente diagramados e os artigos são muito competentemente fundamentados e bem escritos. Alguns são traduções outros são originais. Tipicamente, os originais aplicam os argumentos libertarianos à realidade brasileira. Os artigos têm uma estrutura similar: focam num problema social ou econômico, apontam as falhas das atuais políticas e apresentam a solução. É um formato padrão e profissional. É o que se chama no mundo das políticas públicas de white paper. São artigos com um verniz de objetividade acadêmica, mas que porém são esculpidos para promover uma determinada agenda. Para isso, faz um longo percurso, rico de dados, estatísticas e bibliografia estonteante para o leitor mediano. Esse miolo é geralmente muito consistente e tipicamente absorve-se muito lendo-o. De fato, absorve-se tanto que quando se chega ao fim dele, o leitor já está convencido da integridade do texto, ou até mesmo estonteado com tanta informação, que tipicamente acaba aceitando a conclusão sem questionar o salto quântico entre o meio e o fim do texto. Toma um pouco de prática, mas após ler alguns, aprende-se a enxergar o software por trás da estrutura do texto. Os artigos libertarianos, em particular, começam descrevendo os problemas com as políticas públicas atuais, e buscam levar pela mão o leitor até a conclusão, não de que as políticas precisam ser reformadas, e sim completamente extintas.
Os artigos costumam ser muito profissionais e escritos por estudantes realmente talentosos. Costuma-se questionar quem os financia, mas a verdade é que o custo de se publicar blogs na internet é mínimo, e os estudantes não têm muitas obrigações financeiras a cumprir. Tipicamente não têm dependentes, estudam em universidades públicas e moram com os pais. Ainda assim, a Atlas costuma fazer pequenos investimentos, tipicamente de US$5.000, em organizações como o EPL, seguindo um modelo de venture capital, selecionando, treinando, financiando intellectual entrepreneurs (World Heritage Encyclopedia). Em 2013 a Atlas recebeu US$ 11,459 milhões em doações (Form 990), dos quais, segundo o presidente da Atlas Alejandro Chafuen, US$57.295 foram doados pelos irmãos Koch (Amaral, 2015). Este é evidentemente um modelo muito mais barato e efetivo do que os think tanks tradicionais, quem empregam PhDs em seus escritórios nas grandes capitais. Vejamos então o que têm produzido esses think tanks mirins no Brasil (confira com o plano de governo apresentado por David Koch em 1980).
AMARAL, Mariana. A nova direita. APública, 2015.
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. A ditadura dos empreiteiros (1964-1985). Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense (UFF), 2012.
CELETI, Filipe. A História do Movimento Libertário Brasileiro. Mercado Popular, 2014.
PERKINS, John. Confissões de um Assassino Econômico. Berrett-Koehler Publishers, 2004.
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"...É um formato padrão e profissional. É o que se chama no mundo das políticas públicas de 𝘸𝘩𝘪𝘵𝘦 𝘱𝘢𝘱𝘦𝘳. São artigos com um verniz de objetividade acadêmica, mas que porém são esculpidos para promover uma determinada agenda. Para isso, faz um longo percurso, rico de dados, estatísticas e bibliografia estonteante para o leitor mediano. Esse miolo é geralmente muito consistente e tipicamente absorve-se muito lendo-o. De fato, absorve-se tanto que quando se chega ao fim dele, o leitor já está convencido da integridade do texto, ou até mesmo estonteado com tanta informação, que tipicamente acaba aceitando a conclusão sem questionar o salto quântico entre o meio e o fim do texto. Toma um pouco de prática, mas após ler alguns, aprende-se a enxergar o software por trás da estrutura do texto..."
ResponderExcluirMelhor texto metalinguístico que já vi, este, postado por 𝗨𝗻𝗸𝗻𝗼𝘄𝗻 (https://plus.google.com/103916955175899776536) em outubro 21, 2016 - traz em seu próprio corpo escrito, a precisa e exata definição de si mesmo.
Impressionante!